SANTAS, PROFANAS E NÃO-HUMANAS: UMA ANÁLISE SOBRE ÚTERO, OPRESSÃO E HUMANIDADE EM O CONTO DA AIA

  • Samanta Bergmam
  • Fabiane Lazzaris
Rótulo Autoritarismo, Feminismos, Interseccionalidade, Literatura, distópica

Resumo

O universo de Gilead, criado por Margaret Atwood e contido nas obras O Conto da Aia e Os Testamentos, além de representar um dos principais marcos da literatura distópica, logra ser uma ferramenta de poderosa reflexão sobre semelhanças e singularidades de diferentes recortes sociais e nas múltiplas vertentes feministas. Em um cenário cujo sistema binário de castas representa uma ordem hierárquica muito bem definida, atribui valores e exige performances pautadas na reprodução e na religiosidade, a (sobre)vivência de pessoas com útero dentro desse ambiente consegue espelhar questões presentes da História humana, como a luta por direitos reprodutivos e sobre seu próprio corpo, a valorização da propriedade material e intelectual, a liberdade de expressão e, também, as distintas formas de resistência em condições totalitárias, tecendo um paralelo cada vez mais tênue entre o ficcional e o concreto, oprimido e opressor, individual e coletivo. Ao utilizar as obras citadas e os aportes interseccionais apresentados pela coletânea de artigos em Pensamento Feminista e Pensamento Feminista Hoje organizado por Heloísa Buarque de Hollanda (2019, 2020), e escritas como Ao Sul do Corpo e História das Mulheres no Brasil de Mary Del Priore (1995, 2004), Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis (2016), e Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf (2004) para (re)pensar as interpelações de gênero, raça, classe, sexo e sexualidades, além de refletir sobre como esses aspectos se estabelecem na esfera social (individual e coletivamente), este trabalho se propõe discurtir e inter relacionar a forma com a qual pessoas que geram são vistas, tratadas e objetificadas, tanto no regime autoritário de Gilead quanto em contexto real e histórico ponderando, assim, sobre como a realidade e a ficção se compõem mutuamente em suas infinitas possibilidades de narração, principalmente no que tange violências físicas, psicológicas e sexuais como formas de dominação. Para além da simplificação superficial de existir apenas um grupo opressor e um grupo oprimido em extremos opostos, procura-se evidenciar os traços semelhantes e divergentes das castas femininas de Gilead, ao analisar a dominação sob a qual estão subjugadas através das castas masculinas, mas também as relações de opressão e apoio que praticam entre si, promovendo reflexões acerca desses comportamentos e representações que perpassam, inevitavelmente, pela problematização dos juízos de valor atribuídos à mulheres por meio da religiosidade (nesse caso, de uma interpretação específica do cristianismo eurocêntrico e ocidental) em que as castas se baseiam a fim de perpetuar suas divisões e desenvolver parâmetros do que seria considerado Santo, Profano e Não-Humano a partir de uma lógica branca, binária, heterosexual e falocêntrica. Portanto, o presente trabalho visou questionar, essencialmente, até que ponto o cotidiano de certos grupos sociais (em especial de corpos com útero) já é distópico, uma vez que comumente são alvos diretos e primários de práticas misóginas, tendo suas vidas perpassadas por inúmeras violências repetidas vezes, e ainda, refletir sobre os caminhos que levam à opressão de determinados recortes sobre outros (mesmo que tenham entre si pontos em comum), como bem menciona as escritas de Ana Vazquez em Fascismo e o conto da aia: a misoginia como política de Estado, Daniele Bordignon em The Handmaid's Tale e o direito: uma análise interdisciplinar, Sara York, Megg Oliveira e Bruna Benevides no artigo Manifestações textuais (insubmissas) travesti, e Michael Gordin, Hellen Tilley e Gyan Prakash na obra Utopia/Dystopia: conditions of historical possibility. Direcionando-se, desse modo, à conclusão de que a organização de Gilead, presente nos dois romances de Margaret Atwood, transcende a ideia comumente atribuída à ficção - como algo puramente inventivo e imaginário, sem bases factuais - e demonstra, sobretudo, a representação de eventos e Escrevivências (como declara Conceição Evaristo) já existentes em sociedade, pois evidencia a estratégia mais aterradora e mais antiga socialmente, utilizada para dominação e tortura exercidas sobre pessoas com útero: a de restringir não apenas a liberdade desses seres dentro desta teia de violências, mas principalmente, a tentativa constante de desumaniza-los e reduzi-los a algo cuja única finalidade seja a de servir e ser (ab)usado.

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Publicado
2022-11-23
Como Citar
BERGMAM, S.; LAZZARIS, F. SANTAS, PROFANAS E NÃO-HUMANAS: UMA ANÁLISE SOBRE ÚTERO, OPRESSÃO E HUMANIDADE EM O CONTO DA AIA. Anais do Salão Internacional de Ensino, Pesquisa e Extensão, v. 2, n. 14, 23 nov. 2022.